quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Offline

Fora da estação, o rádio chiava há quase duas horas, quando Valentina começou a despertar. Com a sensação de que o corpo havia se recuperado dos excessos do fim de semana – regado a encontros e desencontros com velhos e novos amigos – ela sentia a brisa fresca romper as ondulações da cortina, invadir o quarto e banhar todo o seu corpo que, sinestesicamente, respondia aos efeitos impressos pelo vento.


Ainda com os olhos fechados, solfejava a melodia da canção que se tornara tema da história de amor vivida na noite passada. Por alguns instantes, Valentina não se lembrada de que se tratava de uma segunda-feira.


No criado mudo – herdado pela avó materna – o rádio ainda reproduzia o mesmo ruído. Com um toque certeiro, Valentina o desligou, sem atentar-se para fato de que, naquela manhã, ela não havia sido acordada, repentinamente, pela voz do locutor que, sempre na mesma entonação, saudava o dia, a vida, a dona de casa, os porteiros, os taxistas, as empregadas domésticas e os motoristas de ônibus.


Enquanto escovava os dentes, ela esperava a água do chuveiro esquentar. O banho não foi demorado e, para a sua surpresa, a calça jeans surrada, o all star recém comprado e a camiseta retrô caíram muito bem com a casualidade planejada para aquele dia. Com a sensação de que estava se esquecendo de algo, entrou e saiu de casa três vezes antes de descer as escadas apressada, comendo uma maçã e selecionando a trilha sonora para acompanhá-la até o trabalho.


A estação do metrô, distante umas três quadras, parecia estar mais longe. Ela ainda não sabia se o motivo era os tênis novos ou as estripulias do fim de semana. Na banca de jornal, conferiu se a matéria, produzida com mais dois colegas, denunciando a compra de votos por líderes de igrejas evangélicas, havia saído da gaveta e repercutido nacionalmente.


Desapontada, não precisou retirar os R$ 0,50 do bolso e comprar o tablóide. Com letras garrafais e, para a sua surpresa e a dos leitores, coloridas, a manchete daquele dia era a requentada e fria matéria sobre o aquecimento no comércio, em virtude do Dia dos Namorados.


Um empurrão retirou Valentina do estado de inércia no qual se encontrava e fez com que ela observasse o vai e vem desenfreado das pessoas que, apressadas, subiam e desciam as escadas da plataforma.


Algumas gesticulavam, como se estivessem indignadas com alguma coisa. Outras corriam em sentidos opostos. Existiam, ainda, aquelas que permaneciam paradas, com o olhar voltado para o horizonte, esperando o trem chegar.


Ainda demorou alguns minutos para Valentina perceber que – naquele dia– a estação não era a mesma. Em alto e bom som, o fone no ouvido reproduzia, ininterruptamente, as músicas do seu artista preferido. Contando nos dedos, ela supôs que já passara mais de 15 minutos e nenhum sinal metrô chegar.


Receosa em abrir a bolsa, em meio a tantas pessoas, procurou um rosto familiar para perguntar as horas. Na primeira tentativa, um rapaz impaciente a informou que o seu celular, assim como o metrô, não estava funcionando. Na segunda tentativa, uma jovem de salto alto e bastante desnorteada desculpou-se por não poder informar, mas não possuía relógio. Na terceira tentativa, o senhor passou tão rápido, que a pergunta ficou no ar, sem resposta alguma.Cansada dos insucessos, afastou-se do aglomerado e, em meio a papéis, canetas, balas de goma e algumas moedas encontrou, no fundo da bolsa, o aparelho de celular. Surpreendeu-se com o que viu. Desligado. Valentina tentou – inutilmente – apertar todos os botões, antes de pensar em Murph e em suas Leis.


Desapontada, retirou os fones e os ouvidos atentaram-se ao zum zum zum.


- Não consegui sintonizar o meu rádio em nenhuma emissora. Contava uma senhora aflita, a um grupo de pessoas.


- Lá em casa, então, está muito pior. Diz um senhor. Além do rádio, a TV também não funciona. Só chuviscos na tela, vocês tinham que ver!


Uma linda jovem grávida garante que tentou ligar para o marido, que está viajando, mas foi em inútil. – Os telefones estão mudos. Nem na rua eu consegui linha. A Internet também parou.


Não seria possível, pensava Valentina. O que estaria acontecendo.


A demora do metrô e a falta de informações aumentavam a aflição das pessoas, que pensavam nos seus chefes, familiares, nos compromissos agendados anteriormente e na impossibilidade de desmarcá-los.


Valentina ainda tentou ligar o aparelho celular, mas desistiu ao ser interpelada por uma criança que, sem nenhuma cerimônia, gritava para quem quisesse ouvir:


- Moça! Oh Moça! Não vai funcionar não. Você não está vendo: - O mundo parou!


- O Mundo parou!


Seria isso?


Valentina não conseguia se mover. A exclamação do menino, acompanhada dos olhos esbugalhados e curiosos, ecoava em sua mente.


- O mundo parou!


- O mundo parou.


Os passos largos e rápidos a levaram para fora da estação. Repentinamente, sentiu que lhe faltava ar. Apoiando as mãos nos joelhos, cabisbaixa, ela tentava respirar.


As sirenes das viaturas da polícia fizeram com que Valentina se recompusesse. Agitados, apreensivos e com as armas apontadas para fora dos camburões, os policiais procuravam muito mais do que um ladrão de galinhas ou um golpista no centro da cidade. Com a cabeça para fora das janelas, eles se comunicavam uns com os outros.


- Mas por que não utilizavam o rádio, questionava Valentina!


O trânsito já estava bem confuso, quando conseguiu acenar para um táxi.


- O senhor pode me fazer à gentileza de ligar o rádio.


- Dona, eu também ia achar bom demais se ele funcionasse. Desde as 5 horas tô tentando e nada...


- Posso? – pediu Valentina, receosa em não conseguir.


- Claro! A Dona fique à vontade. Mas vou logo avisando: duvido que essa joça funcione.E não é que o motorista estava certo. Nem sinal das emissoras.- Não sei a Dona sabe, mas está acontecendo algo nessa cidade hoje. Passei agorinha ali pelas ruas do centro, no miolinho mesmo. As televisões das lojas, que vendem esses aparelhos pra casa da gente, estão desligadas. Nenhuma vivalma ouve rádio, fala no telefone, assiste à TV. Até esse aqui, oh, que a gente usa pra se comunicar com outros taxistas, não funciona...


- A Dona acredita numa coisa dessas?


Valentina já não sabia mais há quanto tempo estava dentro daquele táxi. A impressão era que se passara quase uma hora. Ainda faltavam alguns quarteirões para chegar ao trabalho, quando ela desceu. Tinha pressa. Queria chegar logo à redação e acabar, de uma vez por todas, com aquele tormento.


Quando avistou o prédio do jornal, do outro lado da rua, um arrepio percorreu o seu corpo. Sabe-se lá o porquê, mas sentiu-se aliviada, segura, protegida.


A angústia e a tensão – em um piscar de olhos – foram embora.Valentina apertou os passos e, quando deu por si, já estava dando bom dia ao Sr. Manoel que, – para a sua surpresa, mas não espanto – não estava com o radinho de pilha colado à orelha esquerda (a única que ainda funcionava, como ele costumava dizer), escutando as últimas notícias do seu time, que, depois de quatro anos na terceira divisão, conquistou uma vaga na segunda.


- Bom dia, Valentina! Já sabe que não tem nada funcionando aqui hoje?


- Imaginava, Sr. Manoel...


Na redação, o clima era tenso. Repórteres, fotógrafos, designers, editores, estagiários e, até a copeira e os motoristas, em uníssono, levantavam hipóteses, formulavam teses, falavam em teoria da conspiração, em ataques terroristas, em pane em satélites, em invasão extraterrestre e, até mesmo, na volta de Cristo ou quem sabe, um anticristo.


A cúpula do jornal, reunida há muito tempo às portas fechadas, convocou todos os profissionais e, juntos, traçaram estratégias de cobertura e investigação. Os jornalistas mais experientes iriam percorrer – de carro – do interior até os limites com outros estados.


Valentina ficou responsável por levantar informações na região metropolitana. Cautelosa, abandonou o gravador e tomou posse do bloquinho de notas, acompanhada por um motorista e um jovem aspirante a fotógrafo – que se embrenhou na redação pela primeira vez, há algumas horas, em busca de estágio.


Durante o percurso, a repórter observava – em silêncio – o vai e vem das pessoas, os grupinhos reunidos, os murmurinhos nas esquinas.


Da janela do carro, viu quando um jovem – aparentemente bem apessoado – jogou um senhor de meia idade no chão, pegou sua pasta e fugiu, tranquilamente, na garupa de uma moto.


Foi o estagiário quem percebeu que as agências bancárias estavam fechadas. Já o motorista, apontou, ao longe, um caminhão do exército repleto de homens camuflados, armados e prontos para atacar ou, quem sabe, prontos para defender.


Próximo a uma das principais rodovias do estado, eles decidiram parar. Já estavam em outro município e a situação era a mesma. Os meios de comunicação não funcionavam. Das margens da rodovia, avistavam a pista do aeroporto, repleta de aviões que, sem comunicação, não podiam decolar.Com um caminhoneiro, Valentina obteve a primeira informação relevante. Aquilo tudo havia começado à meia noite.


- Estava viajando tranquilo, ouvindo o noticiário e doido pra ele acabar. À meia noite começa o programa do Valadão – A Hora do Coração – e a Deinha, minha namorada, disse que iria entrar ao vivo pra me mandar um beijão e declarar, pro mundo todo, o seu amor por mim.Porque a senhora sabe que o programa agora vai pro mundo todo, né! É só ligar o rádio na Internet e ouvi. O Valadão agradece o mundo todo pela audiência. Essa tal de Internet é coisa de Deus mesmo. Onde já se viu! Estar em todo lugar. Eu ainda vou aprender a mexer nesse negócio e vou ter uma Internet também.O programa começa meia noite, em ponto. Nunca atrasa um só minuto. Foi praga do João, do Marcelo da Roça e do Eduardo. Isso é inveja daqueles cabras.


Valentina já não se atentava aos pormenores da história. Meia noite - o único dado importante que tinha até agora e já estava escurecendo.


Àquela altura, o motorista e o estagiário percorriam bares em busca de água mineral. A resposta era sempre a mesma: – Acabou e não tem como ligar para pedir mais.


De volta à redação, cada repórter relatava o que encontrou pelas ruas. Em menos de 24 horas, a cidade estava um caos.


Nas praças do grande centro, o comércio ilegal e a venda de drogas ilícitas aconteciam tranquilamente, já que os militares estavam preocupados em encontrar o culpado ou as causas do fenômeno.


Nos bairros da periferia, vários supermercados foram saqueados. A população temia a não reposição de mantimentos.


Nas igrejas e templos religiosos, fieis oravam e pediam a misericórdia de Deus.Em vão, mães, pais, amigos e até animais de estimação aguardavam, ansiosos, nos aeroportos, por desembarques que não aconteceram.


Com medo de voltar para casa, Valentina preferiu passar a noite no jornal. A expectativa era que, exatamente a meia noite, tudo se normalizasse.


Isso não aconteceu.


O fenômeno já perdura uma semana. Muitas pessoas não saem mais às ruas. Escolas, órgãos administrativos, setores importantes para a sociedade decidiram fechar às portas e os olhos.O tablóide que Valentina trabalhava, também deixou de funcionar.O número de doentes e famintos crescia assustadoramente, assim como os índices de homicídios.Com os bancos fechados, o dinheiro deixou de circular.Milícias tomaram conta de vários bairros. Traficantes tornaram-se donos, não somente de morros.Ninguém sabia o que as autoridades estavam fazendo. O Governo então, nem notícia dele.Cada um se defendia a sua maneira.Valentina já não tinha mais força para sair às ruas em busca de explicações. O pouco que havia comido, nos últimos dias, foi doado por amigos e vizinhos.Da janela do seu quarto, observava até que ponto podia chegar a ira, a ganância, a falta de compaixão e amor ao próximo.Da janela do seu quarto veio, também, a última lembrança daqueles dias.


Quando acordou, na Unidade de Tratamento Intensivo do maior hospital da cidade, o otoscópio do médico procurava vida e reação por detrás das grandes pupilas acinzentadas.Ela ouvia, ao longe, uma voz suave perguntando: Está tudo bem? Você consegue me ouvir? Pode mexer com os dedos da mão direita.


Valentina não reagia.


Lembrava-se, apenas, que havia olhado para o céu, no momento em que uma nuvem prateada, com um brilho metalizado, fez com que ela perdesse a visão e a rajada de vento supersônico a arremessou contra a parede.


- Valentina!


- Valentina, você está ouvindo?


Ao levantar o polegar direito, os médicos comemoraram.


- Ela sobreviveu!A TV, a Internet, as redes sociais, os jornais impressos, as emissoras de rádio – todos veicularam a mesma notícia:


Após três anos, começa a reagir a única sobrevivente de fenômeno Offline!